Os interesses nas relações do Brasil com a China

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Em negócios com o país asiático, os jumentos estão morrendo de brinde

Brasil - China

Quando ainda era candidato a presidência do Brasil Jair Messias Bolsonaro demonstrava querer distância da "China comunista" por ser um crítico do sistema. Ele chegou a declarar que a "China estava comprando o Brasil" e foi visitar Taiwan, ilha de 36 mil metros quadrados, considerada rebelde por desafiar o dragão asiático.

Eleito presidente, Bolsonaro alinhou-se de imediato com os Estados Unidos, maior concorrente da China globalmente.​ Mas os negócios do Brasil com o gigante asiático já vinham sendo fortalecidos nos últimos cinco anos e o novo presidente, em 2019, teve que se render ao mercado Chinês que importa produtos agrícolas brasileiros em grande quantidade. Vale lembrar que os empresários do agronegócio apoiaram Bolsonaro nas eleições.

Em meio as negociações comerciais, uma pandemia se instalou no mundo atingindo a gravemente saúde e as situações econômicas dos países. O coronavírus – causador da doença Covid19 – teve início na China no fim do ano passado e começou a se espalhar no Brasil em março deste ano, atingido em pouco mais de 1 mês 7.000 casos notificados e 240 mortes. Tudo isso em um dos piores momentos da história do país, como opinam especialistas de todas as áreas, em termos de desinformação, polarização política, desvalorização do sistema público de saúde e das pesquisas científicas, bem como críticas à falta de transparência governamental.

As relações comerciais bilaterais

Quase 30% das exportações brasileiras vão para a China. Conforme o Comex Stat (portal de estatísticas de Comércio Exterior do governo), dos 224 bilhões de dólares exportados em 2019, US$ 63 bi foram em negociações com chineses.

O primeiro ano do governo bolsonarista, ao final, acabou por consolidar o Brasil como um grande exportador de produtos alimentares para a China, que se manteve como o maior parceiro comercial do Brasil. O segundo – Estados Unidos – tem um volume de negócios em torno de US$ 30 bi, menos da metade exportada para China. 

O vice-presidente do Parlamento Chinês, Ji Bingxuan, esteve no gabinete da Vice-Presidência do Brasil já no dia 2 de janeiro de 2019, logo após a posse de Bolsonaro. Por razão pragmática, o vice-presidente brasileiro Hamilton Mourão foi ao país asiático, indicando uma postura favorável a ampliação comercial.

"Ele viu a importância do agronegócio para a exportação Chinesa e mudou totalmente a visão do governo em relação à China, que tem possibilidade de diversificação e crescimento no comércio bilateral", disse o diplomata de carreira Rubens Antônio Barbosa, ex-embaixador brasileiro em Washington (mestre em Política Internacional e diretor-presidente do Irice - Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior)

O Brasil, no entanto, não tem uma visão clara de como lidar com a China como parceiro comercial, considera o diplomata. "Ao Brasil cabe procurar identificar nichos de mercado na área industrial, hoje a grande parte exportada para a China foram produtos agrícolas", destaca Barbosa. Ele salienta que é possível que haja redução nas exportações de soja e milho brasileiros por causa do acordo de comércio assinado entre o país asiático e os Estados Unidos, em que um dos compromissos é os chineses aumentar a importação desses produtos dos norte-americanos.

A estratégia da China em relação ao Brasil

Já a China possui estratégias em relação ao Brasil, avalia o especialista. Um exemplo disso é o interesse chinês nos jumentos nordestinos (brasileiros), animal cujo o couro é a matéria-prima para a produção do Ejiao – uma gelatina usada na medicina e em cosméticos asiáticos, que movimentou US$ 5,5 bilhões em 2018.

Como os chineses não conseguem produzir quantidade suficiente do animal para atender a demanda do produto, os empresários começaram a buscar asininos em países subdesenvolvidos. No Brasil não há cadeia produtiva de jumentos e os que existem na natureza estão sendo entregues para à China como uma espécie de "brinde".

O governo brasileiro fechou acordo em 2017 para atender o interesse dos asiáticos e permitir o abate de jumentos sem mesmo estabelecer regras tampouco estruturar uma cadeia que garantisse que o animal não entraria em extinção.

Entre 2017 e 2018, mais de 100 mil asininos foram abatidos em frigoríficos do Estado da Bahia. O ritmo dos matadouros previa o envio de 200 mil animais, anualmente, para o mercado asiático, o que faria a espécie desaparecer em menos de cinco anos no Nordeste brasileiro, onde estão concentrados 90% deles. Foi então que a Justiça baiana impediu o abate de jumentos, apoiada pela repercussão negativa em casos graves de maus-tratos durante o transporte desses bichos por grupos chineses. Uma decisão liminar manteve a proibição por cerca de 1 ano.

Em nova ordem judicial, em setembro de 2019, o abate foi liberado novamente e os empresários do ramo começaram a se organizar para voltar com o ritmo esperado pelos chineses, prometendo "futura produção" dos jumentos caso haja demanda e lucro.

Entidades defensoras dos animais, pesquisadores e veterinários não acreditam que a cadeia vá se estruturar tampouco que esse seja o melhor destino para o bicho – que está sendo abandonado nas estradas por ter sido trocado principalmente pelas motos no transporte de carga. A cadeia, hoje, em torno do jumento, é extrativista. Ele é pego na natureza, praticamente de graça, e é morto para render lucro quando sai do Brasil e chega na China. 

Mas para o nordestino, o jumento – ou jegue, como é chamado nos Estados ao norte do Brasil – tem um valor que jamais permitiria matar o bicho para vender a pele e a carne como subproduto alimentar. Não é da cultura brasileira, muitos acham que é até pecado, pois "o bichinho carregou Jesus no lombo", dizem os sertanejos, moradores da região conhecida como Sertão, caracterizada pelo clima quente e seco. Foi lá que o asinino se adaptou muito bem quando chegou às terras brasileiras juntos com os colonizadores.

"Misericórdia", "Ave Maria" e "Creio em Deus pai", são as expressões religiosas mais ouvidas quando se fala em abater jumento no Sertão, que significam reprovação. Na Feira de Euclides da Cunha, município da Bahia, é fácil achar quem vivenciou o trabalho prestado pelo bicho no passado. "Já carreguei muita água em jegue, Deus o livre matar o bichinho", disse Genivalda Oliveira, de 73 anos.

"Quem matar vai prestar contas com Deus depois. Comer gado, galinha, sim, mas jegue não", comentou Juscelino de Jesus, de 44 anos, que recebeu oferta de atravessadores para vender seu animal por R$ 20, mas recusou e disse que vai cuidar dele até o fim.

Os interesses do Brasil

Ao governo brasileiro, muito mais do que os jumentos, interessa outros investimentos chineses, como no setor de energia, onde o gigante asiático está entrando fortemente no Brasil. As linhas de transmissão na cidade de São Paulo são quase todas chinesas. A China também começa a entrar no ramo do petróleo, com empresas dando lance em leilões do pré-sal realizados pelo governo este ano. E, na Bahia, um grupo chinês compõe o consórcio vencedor da licitação para construção da grandiosa ponte que ligará Salvador à ilha de Itaparica.

À curto prazo, o presidente do Brasil tem uma decisão importante a tomar sobre a  implantação da tecnologia 5G no país em 2020. A empresa de telecomunicações chinesa Huawei tem uma presença forte no mercado, "mas há pressões dos Estados Unidos para que o Brasil não compre a tecnologia da China", pondera o diplomata Barbosa. O Executivo brasileiro teria que escolher entre fazer mais um negócio com a China ou manter a boa relação com os Estados Unidos, seguindo as orientações norte-americanas. "O governo está dizendo que não vai afastar ninguém da licitação (para tecnologia 5G), que vai comprar pelo melhor preço, mas teremos que ver o que vai acontecer", especula.

Mas a médio e longo prazo, o maior campo de interação vai ser o agronegócio. A participação do Brasil nos alimentos da China vai continuar grande, com exportação de soja, milho, e principalmente de carne, com destaque para os suínos, por conta do impacto da crise sanitária que matou muitos porcos no país asiático. Neste ano, a produção e exportação de carnes devem avançar, apesar da China já ter sinalizado que pretende renegociar os valores.

Em 2019, as compras de carne bovina pelos chineses no Brasil chegaram a quase 500 mil toneladas, cerca de 50% mais do que no ano anterior. O produto foi enviado também para Hong Kong, e as exportações brasileiras totalizaram 1,89 milhão de toneladas. Isso reduziu a oferta no país e aumentou o preço da carne para os brasileiros, que ainda permanece elevado nesse início de 2020.

Conclusão

O fato é que o Brasil terá que definir esse ano seus objetivos nesta relação e comércio com a China. Isso significa estabelecer o que está disposto a abrir mão e a reavaliar para fazer negócios de peso com o gigante asiático. Por ora, a transação tem tido dois impactos por aqui: os jumentos estão se acabando como cortesia no pacote de investimentos chineses e os brasileiros estão pagando mais caro pela carne de primeira que está indo toda para China. Até o momento, o que vimos é que o presidente Bolsonaro já cedeu no discurso reativo com o país comunista, com isso atraiu grandes investimentos dos asiáticos para áreas como infra-estrutura e petróleo. Mas não sabemos ainda se o governo vai encarar um possível atrito com os EUA – desfazendo parcerias e acordos – de olho no dinheiro chinês que tanto agrada aos ruralistas brasileiros.  

No momento, essas transações e decisões estão praticamente paralisadas, é preciso que o Brasil atravesse a crise instalada pelo coronavírus. Mas atitudes controversas do presidente Jair Bolsonaro – que vem comentando erros de conduta, como não apoiar o isolamento social amplamente pedido por órgãos de saúde e dirigentes do mundo todo – indicam que o país terá dificuldades para além das questões de saúde e econômicas. As medidas do governo brasileiro

têm impactos no cenário internacional, pois o Brasil tem o nono maior PIB (Produto Interno Bruto) mundial.